domingo, 12 de agosto de 2007

Harry Potter segundo Stephen King


Em artigo publicado pela revista Entertainment Weekly, o consagrado escritor Stephen King se declara fã da série Harry Potter e analiza seu gran finale. Também fala da polêmica dos críticos, os chatos spoilers e da sobrevivência da literatura de JK Rowling.


Agora que o barulho já terminou, a batalha foi perdida e ganha, a Batalha de Hogwarts, bem entendido, e todos os segredos já saíram do Chapéu Seletor; aqueles que apostaram na morte de Harry Potter perderam seu dinheiro duplamente: o garoto que sobreviveu, transformou-se exatamente em um sobrevivente.

E se você acha que este é um spoiler, a esta altura, bem você nunca foi um fã de verdade do Potter para começar. O ultraje com as críticas adiantadas (Mary Carole McCauley do Baltimore Sun, Michiko Kakutani do New York Times) já se desfez... embora aquele gostinho amargo tenha permanecido para muitos fãs.

Para mim, ficou, embora não esteja relacionado com este conceito bobo de spoiler de ultimamente, nem com a tal ética de respeito à data de lançamento do livro. O voto de silêncio que antecedeu o lançamento era no final das contas, uma trama perpetrada pelas editoras Bloomsbury e Scholastic, e não - até onde eu sei - uma lei saída da Carta Magna Britânica ou da Constituição americana.

Nem mesmo o protesto inflamado de Jo Rowling ("Estou pasma que alguns jornais americanos tenham decidido publicar... críticas ignorando totalmente o desejo de literalmente milhões de leitores, especialmente crianças...") me convence. Estes livros deixaram de ser infantis lá pelo meio da série, no Cálice de Fogo, Rowling já estava escrevendo para todos, e tinha consciência disso.

E a prova definitiva do quanto eles eram adultos aparece bem no final - de uma forma esplêndida - em Deathly Hallows quando a senhora Weasley percebe que a odiosa Belatrix Lestrange está tentando acabar com Ginny usando a Maldição da Morte, grita: "Minha filha, não, sua puta!". E este é o "puta" mais chocante da ficção recente, já que não existem palavrões em nenhum livro do Potter, este atinge em cheio e com uma força quase fatal. E está perfeitamente no contexto como a resposta de um adulto que vê seu filho em perigo.

O problema com as críticas antecipadas - e nos dias imediatamente posteriores ao lançamento - foi o mesmo que persegue a obra de Rowling desde o livro 4 (Cálice de Fogo), depois que a série já tinha virado um fenômeno mundial. E aconteceu porque os livros se cercaram de um mistério no melhor estilo do Kremlin e todas as críticas desde o ano 2000, tentaram ser fiéis a este segredo.

Os críticos sempre foram ótimos - A senhorita Katukani não é exatamente uma "carrasca" - mas a popularidade dos livros acabou arruinando até mesmo as melhores intenções de qualquer crítico.
Em sua pressa para encher colunas e desta forma continuar fazendo parte da "Igreja do Que Está Acontecendo Agora"; poucos críticos do Potter disseram alguma coisa que sequer mereça ser lembrado. A maioria deles tentou encaixar o Harry, seus amigos e aventuras em duas formas: sociológicamente ("Harry Potter: Uma Benção ou Doença Infantil?") ou economicamente ("Harry Potter e a Câmara de Descontos").
E eles analisam coisas como a narrativa ou a linguagem, mas não podem fazer muito mais do que isso...
Quando você tem só 4 dias para ler um livro de 750 páginas e escrever uma crítica com 1100 palavras, quanto tempo você tem para realmente curtir sua leitura? Para pensar no que leu? Jo Rowling preparou uma refeição de sete pratos, cuidadosamente servidos de forma adorável.
As crianças e adultos que se apaixonaram pela série (e me incluo aí), saborearam cada garfada, desde a entrada (Pedra Filosofal) até a sobremesa (o lindo epílogo de "Deathly Hallows").
Muitos críticos, por outro lado, engoliram tudo de uma só vez e devolveram em seus jornais páginas digeridas pela metade.

E por isso, poucos destes críticos, desde Salon até o New York Times, realmente pararam para considerar o que a senhora Rowling havia criado, de onde veio e o significado que terá no futuro. E os blogs não foram muito melhores. Eles só pareciam interessados em saber quem sobreviveria, quem morreria e quem estava revelando os segredos. Enfim, tudo muito bobo.

Então, o que aconteceu? De onde veio o "Ministério da Magia"? Bem, existem algumas pistas sobre isso.
Enquanto os acadêmicos e críticos do sistema educacional se queixavam de que ninguém mais lia e que tudo em que as crianças pensavam eram seus Xboxes, iPods, Avril Lavigne e High School Musical, os garotos que os preocupavam estavam silenciosamente adotando os livros de um tal de Robert Lawrence Stine.
Conhecido nos meios literários como "Bob Jovial" Stine, este cara ganhou mais tarde um outro apelido, o de "Stephen King da literatura infantil". Ele escreveu seu primeiro livro de terror adolescente (Blind Date) em 1986, anos antes da chegada da Pottermania... mas logo, você não conseguia olhar a lista de best-sellers do USA Today, sem ver 3 ou 4 de seus livros.
Estas obras quase não chamaram a atenção dos críticos - que eu saiba, Michiko Katukani nunca escreveu sobre "Who Killed the Homecoming Queen?" - mas os garotos deram bastante atenção e RL Stine experimentou uma onda de popularidade com eles, em parte movida pela internet ainda iniciante, para transformar-se no autor infantil de maior vendagem do século 20.

Como a Rowling, ele era da Scholastic, e eu não tenho dúvida que o sucesso do Stine foi uma das razões para a Scholastic arriscar-se na contratação de uma jovem e desconhecida escritora britânica, para começar. Ele é desconhecido da maioria... mas, é claro, João Batista também nunca conseguiu a mesma atenção que teve Jesus.

Rowling fez bem mais sucesso, de crítica e financeiro, porque os livros do Potter foram crescendo com o passar do tempo. Esse, eu acho, é o maior segredo (nem tão secreto assim; para entender visualmente o que digo, comprem um ingresso para a "Ordem da Fênix" e veja como o antes "fofinho" Ron Weasley está bem maior do que Harry e Hermione).
Os garotos do RL Stine são garotos para sempre, enquanto aqueles que curtem suas aventuras continuam crescendo e inevitavelmente esquecem os velhos "Nikes" da infância.
Os garotos da Jo Rowling cresceram... e seu público cresceu junto.
Isso não teria tanta importância se ela fosse uma escritora ruim, mas ela não era.

Enquanto alguns blogs e a mídia tradicional se preocupavam em dizer que a ambição de Rowling era quem ditava o ritmo para o crescimento da popularidade de seus livros, eles não perceberam que o talento também crescia.
Talento não é algo estático, está sempre crescendo ou morrendo, e para resumir o que penso sobre Rowling é que quando começou, ela já era muito melhor do que RL Stine (um escritor adequado, mas insípido), mas quando escreveu a última frase de "Deathly Hallows" ("Tudo está bem"), ela se tornou uma das melhores escritoras de seu país - não tão boa quanto Ian McEwan ou Ruth Rendell (ainda não), mas facilmente no mesmo nível que Beryl Bainbridge ou Martin Amis.

E, é claro, tinha a magia. É o que os garotos almejam, acima de tudo. E isso nos leva de volta aos irmãos Grimm, Hans Christian Andersen e a boa e velha Alice, correndo atrás do coelhinho. Os garotos estão sempre procurando pelo "Ministério da Magia" e geralmente o encontram.

Um dia, em Bangor, minha cidade, eu estava andando pela rua quando vi um garotinho de uns 3 anos com o rosto sujo, os joelhos cheios de cicatrizes e um ar muito compenetrado. Estava sentado entre a calçada e o asfalto, tinha um galho em sua mão com o qual golpeava a terra. "Fique aí!" ele gritava. "Fique aí, droga! Você não pode sair enquanto eu não disser a Palavra Mágica! Você não pode sair enquanto eu não mandar!"

Muitas pessoas passavam sem prestar muita atenção. Eu diminui meu passo, e fiquei observando enquanto pude porque também converso com as coisas que habitam a minha imaginação e peço a elas o mesmo, para que fiquem por lá e não saiam enquanto eu não der permissão.

Fiquei encantado com o "faz-de-conta" do garoto (sempre presumindo que era um faz-de-conta hehehehe).

E algumas coisas me ocorreram. Uma, fosse ele um adulto, a polícia já o teria levado para um exame psiquiátrico. Outra, que crianças exibindo tendências paranoico-esquizofrenicas são simplesmente aceitas pela sociedade. Todos entendemos que crianças são meio malucas até mais ou menos seus 8 anos de idade, quando cortamos o seu "barato", vale tudo!

Isso aconteceu em 1982, enquanto eu me preparava para escrever uma história sobre crianças e monstros (A Coisa), e essa cena influenciou bastante aquele livro. Mesmo agora, anos depois, eu penso naquele garoto - um pequeno "Ministro da Magia" usando um galho seco como varinha - e espero que ele não tenha se considerado velho demais para os livros de Harry Potter. Talvez tenha, é triste pensar assim, mas tem uma coisa que JRR Tolkien admite e que Rowling ainda não - é que às vezes - frequentemente, na verdade - a mágica termina.

Foram as crianças no caso da Jo Rowling que foram cativadas primeiro, demonstrando com a lógica irrefutável dos 10 bazilhões de livros vendidos que os garotos ainda colocam seus iPods e Game Boys de lado para pegar um livro... se a mágica estiver nele. E que ler é mesmo algo mágico, disto eu nunca duvidei.
Gostaria muito de saber quantos adolescentes e pré-adolescentes deixaram a mesma mensagem em seus telefones nos dias após o lançamento: Não liguem hoje, estou lendo!

A mesma coisa deve ter acontecido com a série "Goosebumps" de RL Stine, mas, diferente dele, a Rowling trouxe os adultos para o seu círculo de leitores, deixando-o bem maior.
Este não é um fenômeno único, embora pareça mais associado aos escritores britânicos: Alice no País das Maravilhas começou como uma história contada para uma garotinha de 10 anos, chamada Alice Liddell, por Charles Dogson (também conhecido como Lewis Carroll); e agora ele é ensinado em muitas faculdades. E "Watership Down", a versão de Richard Adams da "Odisséia" (com coelhos no lugar de humanos), começou como uma histórinha para distrair suas filhas pré-adolescentes, Juliet e Rosamond, em uma longa viagem de carro.
Como livro, porém, foi vendido como "fantasia para adultos" e tornou-se um best- seller internacional.

Talvez seja a prosa britânica. É duro resistir a hipnose de vozes calmas e sensíveis, especialmente quando elas estão "fazendo-de-conta". Rowling sempre fez parte daquela tradição de contadores de histórias (Peter Pan, originalmente uma peça de JM Barie, é um caso parecido). Ela nunca perdeu de vista o seu tema principal - o poder do amor para transformar situações terríveis e crianças em adultos decentes e responsáveis - mas sua escrita é fundamentalmente para contar uma história.
Ela é mais lúcida do que brilhante, mas tudo bem, quando ela expressa seus sentimentos permanece como uma "amante" destes sentimentos, sem negar sua verdade e sua força. O melhor exemplo em "Deathly Hallows" aparece logo no início, quando Harry se lembra de sua infância na casa dos Dursleys. "Lembrar aqueles tempos causou nele um estranho sentimento de vazio," Rowling escreve "Era como lembrar de um irmão mais novo que foi perdido há muito tempo". Honesto, nostálgico e sem exageros.
Um pequeno exemplo do estilo que permitiu que Jo Rowling quebrasse a barreira entre gerações sem nenhum esforço e sem perder aquela dignidade alegre que é um dos maiores charmes da série.

Os seus personagens são bem desenhados, seu ritmo impecável, e embora existam algumas pequenas falhas de continuidade, a história é sólida como um todo e quase perfeita em suas mais de 4 mil páginas.

E ela domina muito bem a famosa sagacidade britânica, quando Ron, tentando ouvir uma transmissão ilegal em seu rádio bruxo, pega uma música pop chamada "Um Caldeirão Cheio de Amor Quente e Forte". Devia ser alguma versão bruxa da Donna Summer cantando.
Tem também sua resposta inteligente aos tablóides britânicos - um assunto que tenho certeza ela conhece muito bem - na persona de Rita Skeeter, talvez o melhor nome de um personagem fictício, desde os criados por Jonathan Swift.
Quando Elphias Doge, o perfeito cavalheiro inglês, chama Rita de "truta metida", eu tive vontade de me levantar e aplaudir. Toma essa! Tem muita "carne" nos "ossos" destes livros - boa escrita, sentimentos honestos, uma doce, mas inflexível visão da natureza humana... e sua dura realidade: "Minha filha não, sua puta!" O fato de Harry atrair adultos além das crianças nunca me surpreendeu.

Os livros são perfeitos? Não, de fato, alguns trechos são muito longos. Em "Deatlhy Hallows", por exemplo, tem um tanto de enrolação e acampamento naquela tenda que chega a dar a sensação de que Jo Rowling estava de olho no relógio para que o livro coubesse no tempo de um ano letivo, como os seis anteriores.

E às vezes ela cai na "Síndrome do Robinson Crusoé". Todas as vezes que o herói náufrago precisa de algo, ele volta ao seu navio - que convenientemente está preso nos recifes ao redor da ilha deserta - e pega o que precisa de seus porões (em uma das falhas mais divertidas da História da Literatura Inglesa, Robinson sai para nadar nú e a seguir, enche seus bolsos).

Desta mesma maneira, sempre que Harry e seus amigos se metem em alguma enrascada, produzem um novo feitiço - fogo, água para apagar o fogo, escadas que convenientemente se transformam em escorregadores - e eles se livram.
Eu aceito a maioria deles, em parte porque ainda tem em mim um tanto de criança que ainda tende mais para o lado da alegria do que o da dúvida, mas também porque eu entendo a mágica por ela mesma, como algo que não tem limites.

Ainda assim, no climax da Batalha de Hogwarts, com os gigantes atacando, as pinturas gritando e os bruxos voando, eu estava quase desejando que alguém puxasse uma boa e velha metralhadora e começasse a atirar como Rambo.

Se todos estes feitiços - criados pela necessidade - como as coisas do navio do Crusoé - eram sinais de um esgotamento criativo, são os únicos que percebi, e isso é surpreendente. Na maior parte do tempo, a Rowling está se divertindo e muito e quando um bom escritor se diverte, seu público também está se divertindo. E você pode ter certeza que terá o retorno financeiro disso (e, bem, ela teve!)

Uma última observação: Os acadêmicos parecem considerar que a mágica de Harry não é suficientemente forte para transformar uma geração de não-leitores em traças de bibliotecas... mas não são os primeiros a subestimar a mágica de Harry; olha só o que aconteceu com Lord Voldemort. E, é claro, que estes acadêmicos nunca dariam nenhum crédito a Harry não fossem as listas de best-sellers. Um herói literário tão famoso quanto os Beatles? "Nunca aconteceu!" eles gritariam. "O romance tradicional está tão morto quanto Jacob Marley! Pergunte a qualquer um! Em outras palavras, pergunte-nos!"

Mas ler nunca morreu para os garotos. Au contraire, o lado infanto-juvenil está bem mais saudável do que o adulto, que precisa enfrentar pelo menos umas 400 novas pretensiosas e chatas "novelas literarias" a cada ano.
Enquanto os tais academicos estão prevendo (e lamentando) o surgimento da sociedade pós-literária, os garotos estão complementando o seu Potter com narrativas de Lemony Snicket, as aventuras do adolescente Artemis Fowl, a trilogia de Philip Pullman, as aventuras de Alex Rider, os mistérios maravilhosos de Peter Abrahams, as histórias daquele jeans viajante.
E claro, não podemos esquecer o invencível (mesmo sendo meio fedido, às vezes) Capitão Cueca. E também, que tal estender um pouco a velha coroa para RL Stine, o jovial João Batista de Jo Rowling?

Eu comecei citando Sheakespeare; vou fechar com "The Who": Os garotos estão bem. A permanencia neste caminho depende de escritores como JK Rowling, que sabe muito bem contar uma história (e isso é importante) e o faz sem falar demais (ainda mais importante) ou recorrer aos exageros do preciosismo (de vital importância). Porque se ela deixar o campo para estes "trouxas" intelectuais a novela tradicional estará morta, eles irão matá-la.

É bom "fazer-de-conta" que estou falando disso. Conhecida em alguns círculos como a "Ministra da Magia", JK Rowling nos mostrou como as coisas devem ser feitas: é um padrão bem alto, e Deus a abençoe por tê-lo feito.

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5 comentários:

  1. Olá Drika, tudo bem?

    Adorei a crítica do Stephen King. Foi você quem traduziu da "Entertainment Weekly"?

    Se sim, parabéns!!! Se não, você tem informação de quem traduziu?

    Obrigada,

    Anna :)

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  2. Oi Anna,
    Obrigada pelos elogios, eu mesma traduzi o texto.
    Abraços,
    Drika

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  3. Oi Drika,

    Muito obrigada pela informação. O pessoal da comunidade "Armada de Dumbledore" havia recebido por e-mail esse texto e não tinha indicação da fonte. Eu fiquei procurando pela net e achei a sua tradução.

    Agora já sabemos de onde veio!!!

    Mais uma vez, obrigada.

    Anna :)

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  4. Não conheço outros livros de Stephen King além da série A Torre Negra, por isso digo (sem mencionar outros livros): Se o cara que escreveu A Torre Negra disse tudo isso sobre Harry Potter, é porque eu e milhões de fãs ao redor do mundo estávamos certos em considerar Jo Rowling e seus livros geniais.
    Matheus K. Bellini

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